sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Embora soubesse



Embora soubesse que não pertencias a ninguém
fiquei à tua espera atrás do muro de pedra que nos dividia,
pensando, evasivamente perplexo, que chegasses devagar
na pontas dos dedos, sapatos dobrados, saia de xita
a fazer lembrar a cor dos navios naufragados nos meus sonhos;
navios de âncoras polegares, de janelas anelares,
proas de indicador, sereno balanço à linha recta do horizonte...

Não vieste naquela tarde correr sobre o campo verdejante,
nem tão pouco os teus olhos se puseram a navegar nos meus
como eu esperava, quebrando as correntes frias
que me prendiam ao fundo. A mais íntima sensação de desejo
impossível de descrever, veio. Impraticável. Delirante...

Chamei as aves pousadas na cerca do outro lado
para pousarem na minha mão esquerda, cega para as palavras,
mas infinitamente soberba na forma de sonhar o silêncio.
E então o esvoaçar, a minha metamorfose interiorfeita
com uma plumagem suave como a tua pele doce...

Apareci a voar à tua janela.
Sorriste-me da porta entreaberto do duche,
onde o teu corpo nu recebeu a carícia da água quente
e o vapor do teu sorriso me embaraçou os lábios
desequilibrando-me e fazendo-me cair no jardim,
quando a tua coxa já se via ao pousares o pé no tapete azul...

Embora soubesse que não pertencias a ninguém: amava-te.
Mesmo sabendo que te imaginara nos meus sonhos: queria-te.
E porque eu ainda tinha coração e nunca mais te vi: perdi-o...
As aves levantaram-me em peso e levaram-me para lá do muro.
As asas caíram-me como cabelos brancos enfraquecidos pelo tempo.
Ambos sabíamos que não irias voltar ao muro, juntar os cotovelos
e mergulhar o queixo sobre as palmas das mãos, para me observares

com a tua meiga forma de olhar..Então parti.
Atravessei descalço o mundo inteiro e voltei.
Ao mesmo muro, à mesma espera.
Embora soubesse que não pertencias a ninguém,
e tivesse a certeza que não vinhas,
naquele dia apareceste com duas maçãs no bolso
de um belo vestido violeta-amanhecer, na claridade de um beijo;
Sorriste-me, abraçaste-me
e puseste a maçã vermelha na minha mão...
As aves voltaram a pousar em meu redor.
Tu não estavas. Apenas as maçãs inteiras sobre o muro, e eu.
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quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Correndo para o abismo




Correndo pela cidade sem ter a mínima ideia de como parar ou voltar atrás. Foi assim que começou a minha viagem surpreendente. Não sabia porque corria, mas ia cada vez mais rápido e com menos tracção. Motos por todo o lado, lixo espanhado pelo chão, e até um tanque de guerra pairava sobre um quintal, que antes tivera uma bela horta. Chocava com as pessoas que passavam por mim: o merceeiro da esquina que usava um avental cheio de flores, a peixeira ambulante, o vendedor de enganos, o profeta das ruas. Mas a velocidade aumentava cada vez mais. Eu não mandava nos meus membros, nem na minha mente. Estava posto ali para correr sem saber porquê. Sem ter tempo para parar e beber um café cremoso ou para respirar calmamente a brisa junto ao miradouro. Corria, corria como nunca correra até então. A boca parecia secar com sede, mas logo uma chuva cupiosa se abateu sobre mim. Da pureza da chuva descobri o aroma da água. Passaram muitos quilómetros, muitas avenidas, curvas e esquinas, muitas pessoas com diferentes sentimentos. Mas ninguém corria como eu. Não era dia de maratona, não era ladrão a fugir da polícia. Que era então? O futuro foi-se estreitando, o passado foi pesando, acumulando-se nas falésias dos passos. Tudo terminou num ápice: Um subida íngreme, duas pernas cansadas, um coração desolado... e uma coragem perdida. O fim da viagem para um soldado inquieto.
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A Última Viagem



Côncava esperança,
as velhas margens da tua idade,
as feridas nas mãos,
o sol que queima debaixo das unhas
o verde líquido da tua pele na pele selvagem de uma rã..
O pântano quadrado,os olhos dispersos na poeira;
lágrimas triangulares entre gritos...
Uma outra noite feita de ânsia,
o espectro da inocência,
trilho de inconformismo variável...
O infinito em pedaços,
a última viagem...
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terça-feira, 25 de agosto de 2009

Noite Fria



É o gelo nas árvores que me faz lembrar as tuas mãos,
é o frio do vento que me leva a escrever-te em silêncio
à luz imaginária de uma lareira apagada...
Sentado no sofá, abro a janela dos meus olhos,
aqueço as pupilas com as palavras que te escrevo
e espero que a manhã acorde para lá dos portais
da saudade
onde vozes ténues chamam à clareira
«mundo imaculado»..
Demoro a escrever,
não por causa da neve nas pálpebras,
mas porque o escuro me determina
a cegueira na ponta dos dedos.
E aí tenho de voltar à sensibilidade do coração,
ao delinear das sílabas,
gritando sem se ouvir para lá das colinas,
mas ecoando na tua alma...
que este poema é um ramo dessa árvore
plantada num sonho,
numa noite fria
e desenhado para ti.
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